Tenho dito em público que o Chega é neofascista e a Iniciativa Liberal de extrema direita. Porque a IL não se caracteriza pelo liberalismo, aliás inexistente (pedem para ser o Estado a financiar com vales a saúde e escolas privadas, aceitam e defendem os layofs), mas pelo anti-comunismo, património da extrema direita. De Portugal cheio de cartazes manipulatórios a dizer que vivíamos em socialismo, a la Trump e Bolsonaro, a mesma política, a mesma frase, mas sem a brutalidade destes; à presença no desfile do 25 de Abril a gritar frases anti-comunistas; ao não resumir o apoio aos ucranianos ao povo ucraniano mas o apoio explicito a lideranças de extrema-direita na Ucrânia, aliás recebidas mais de uma vez pela IL. Hoje Cotrim atirou-se contra Trotsky, o líder socialista internacionalista mais importante do século XX. Deixo aqui um artigo meu sobre Trotsky e uns livros para Cotrim ler. É que a política não se faz de cartazes e frases feitas, Cotrim sim, Cotrão não, rima, é certo, mas não dá nem uma música para o Quim Barreiros, que como bom liberal trabalha para tudo e todos deste que lhe paguem, é a "bolsa" de valores.
O partido de Lenin e Trotsky foi fuzilado
Uma anedota inspirada contava que na URSS "o futuro era certo mas o passado imprevisível". Aplica-se também agora ao Ocidente, e sua memória? Hoje as evidências históricas são incontornáveis. Demonstram, ao contrário da tese mediatizada, que há um corte radical entre a política bolchevique (1917-1927), de que Trotsky era o líder depois da morte de Lenine, e a ascensão do stalinismo.
Todas as investigações realizadas nas últimas duas décadas – sublinhamos, todas – comprovam um corte, no regime soviético em 1927/28. É nesse ano que se dá a coletivização forçada; a introdução massiva do trabalho forçado a uma escala de centenas de milhar até depois da guerra; o início da militarização da sociedade; é nesse ano que nas fábricas a comissão de trabalhadores deixa de ser o órgão mais importante para esse papel passar a ser desempenhado pelo chefe da polícia política; é nesse ano que as mulheres, que deram com a revolução russa o maior salto de sempre de emancipação, passam a ser de novo escravas do lar e da fábrica, com medidas como a reintrodução da proibição do aborto e o encerramento de creches para controlar a escassez de força de trabalho existente e previsível. Lenin é o homem que deixa explícito no seu «testamento» (22) que Stalin não deverá suceder-lhe por ser bruto, desleal, e não saber o que fazer com demasiado "poder concentrado" em si (23). O partido de Lenin e Trotsky foi fuzilado – na brutal expressão de Victor Serge (24).
A URSS tinha, no final dos anos 1920, uma produção efetiva inferior à de 1914. Estava arrasada, pela I Guerra, a guerra civil e o isolamento. Não havia nem domínio científico, nem quadros formados, nem tecnologia, nem máquinas, para produzir muito para todos. A solução seria pois uma revolução na Alemanha e nos países onde havia desenvolvimento para produzir em abundância; ou uma ditadura de uma minoria – a burocracia do Partido. A burocracia passou a controlar os recursos, vivendo com privilégios (magistralmente caricaturados por George Orwell em O Triunfo dos Porcos (NR)), embora a maioria do povo continuasse a viver com escassez de bens essenciais (25). Muito longe da miséria da servidão czarista, mas cada vez mais distante do socialismo. Porque, para que uma casta se apropriasse dos recursos limitados, impôs uma férrea ditadura.
A Europa Ocidental desenvolvida tem uma dívida, ainda por restituir, para com a Rússia atrasada de 1917 – eles ousaram fazer aí a primeira revolução num país. E, imediatamente, os ecos desta chegaram à burguesia europeia que, por temor da repetição de novos Outubros e sob pressão da vaga de entusiasmo que a revolução dos sovietes suscitou em toda a Europa e no mundo, aceitou elevar as condições de dignidade mínimas do mundo dos trabalhadores.
É depois da revolução russa que pela primeira vez o horário de trabalho (junto com a intensificação laboral na Europa) diminui no século XX de forma constante e significativa (26). Sem a revolução russa não se compreende a rápida extensão do sufrágio universal em grande parte dos países europeus. Os primeiros programas sociais na Europa devem-se a Outubro. Os europeus maravilharam-se com as vanguardas artísticas representadas por um Maiakovsky ou um Eisenstein – a revolução tinha dado o melhor à humanidade naqueles dias. Foi também a Rússia que pagou o preço mais elevado do Estado Social Europeu – 20 a 30 milhões de mortos na II Guerra Mundial.
A social-democracia alemã – historicamente tão crítica do stalinismo – recusou-se a assumir a sua participação na criação deste monstro, o da burocracia soviética. Rejeitou apoiar em 1919, 1923 e na década de 30 a revolução russa, deixando-a isolada, atrasada, sem meios para fazer face à dramática escassez, portanto inviabilizando a construção de uma sociedade socialista. Que não poderia ser feita sem a abundância, baseada na qualificação da força de trabalho, avanços científicos e técnicos significativos. Mesmo que o preço a pagar pelo temor da revolução na Alemanha tenha sido o quase extermínio do SPD, nos anos 30, com a ascensão do nazismo.
Se é verdade que nas guerras destes 100 anos as burguesias nacionais chocaram umas com as outras, fruto da sua voragem insaciável sobre os recursos, efetivamente, a história do século XX é também a história das revoluções, e da luta das burguesias ou classes dirigentes para as impedir e combater, bem como da tentativa -, no último quartel do século XX -, para destruir o sentido de classe dos trabalhadores, profaná-lo, atomizá-lo. Desagregando o mundo do trabalho, seja nos contratos diferentes para trabalho idêntico; seja na concentração de escritórios no centro e expulsão dos que trabalham para a periferia; ou ainda na separação brutal entre trabalho manual e intelectual, colocando a grande massa dos-que-vivem-do-trabalho como consumidores e não produtores de cultura, por exemplo.
(...)
A visão da revolução russa «totalitária» confunde governos, regimes e Estados – é um erro crasso. Ela é subsidiária da obra da filósofa Ana Arendt e de muitas interpretações simplificadas da sua obra (28). Que assumem (corretamente) que entre Stalin e Hitler há uma grande semelhança nos regimes (ditadura). Mas ocultam que entre Hitler e as democracias liberais há uma identidade do Estado (capitalista) (29).
Trotsky não foi Stalin porque o recusou
Trotsky não foi Stalin porque o recusou (31). Recusou dirigir o "seu" exército vermelho contra a burocracia emergente, porque não esteve disponível para dirigir um processo que estava fracassado internamente. Porque sem leite não há socialismo. E na URSS não havia leite (32). O socialismo é a abundância, a URSS era a escassez. A chegada ao poder de Stalin não é resultado da revolução, mas da sua derrota.
Trotsky preferiu, mesmo exilado num "planeta sem passaporte" – a expressão é de André Breton (33), porque todas as democracias-liberais europeias recusaram o direito de exílio a Trotsky, expulso da URSS – assumir a direção da Oposição de Esquerda e durante vinte anos ser perseguido, até ser assassinado no México, em 1940, data em que a maioria dos dirigentes bolcheviques e altos quadros do Exército Vermelho tinham sido também mortos ou presos. Aliás, foi assassinado depois de todos os outros, não por acaso, mas porque até aí ele era o bode expiatório dos processos de Moscou cuja acusação primordial era, imagine-se, o crime de trotskismo. Dedicou a sua vida a tentar fora da Rússia a revolução mundial. Falhou.
A forma absurda, quase risível, com que muitos dirigentes do Partido Bolchevique caminharam para as execuções em confissões falsas de crimes que jamais cometeram, tudo para «salvar o partido» (34), foi descrita de forma magistral pelo escritor Leonardo Madura em O Homem que Gostava de Cães (35), e pelo clássico romance sobre os processos de Moscovo O Zero e o Infinito, de Artur Koesler (36).
Para Victor Serge as hipóteses de vencer a ditadura burocrática depois dos anos 30 eram pequenas, mas sem a luta da Oposição de Esquerda «a derrota da revolução teria sido cem vezes mais desastrosa» (37). Teria? Não sabemos. Sabemos que foi preciso derrotar – e aniquilar fisicamente a Oposição de Esquerda – para erguer a ditadura soviética depois de 1928.
Nos países mais atrasados, onde a modernização capitalista é mais tardia, e já há um peso de um forte movimento operário, a tendência é para esta modernização ser realizada com o recurso a ditaduras – Rússia, Itália, Alemanha, também Portugal, e Espanha.
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As últimas cinco décadas da história da Europa foram marcadas também pelo inusitado crescimento do papel do Estado na economia. E não pela ausência de intervenção do Estado na economia, como tantos argumentam. Houve mutações – profundas – na intervenção estatal. Seja através dos mecanismos de Concertação Social, seja através das políticas sociais focalizadas, da Assistência Social, que cobrem o crescente desemprego e ou baixos salários, seja através das alterações do quadro legal que regulamentam a precarização laboral (a flexibilidade laboral é marcada por formas de regulamentação estatal que a promovem e não por ausência de regulamentação do Estado), da dívida pública, da coleta de impostos, dos subsídios às empresas privadas, e da extensão do papel neste na formação e manutenção da força de trabalho, hoje há muito mais e não menos Estado do que antes da II Guerra Mundial.
A crise dos regimes políticos europeus atuais, expressa, entre outros fatores, no quase constante aumento da abstenção eleitoral, na crise do bipartidarismo, crise que se agravou em múltiplos aspectos depois de 2008, não é uma crise de Estado. Pelo contrário, este fortaleceu-se no curto prazo ganhando uma influência sobre o tecido econômico enorme, com a salvação das instituições bancárias e financeiras. Mas não pode, a crise, ser compreendida fora do âmbito do crescimento do aumento de impostos concomitante à perda de serviços e da sua qualidade – o fim do "modelo social europeu". A médio prazo este «fim do modelo social» vai transformar-se numa crise de próprio Estado.
(...)
Assistimos ao que a intelectual norte-americana Elen Wood chamou o "recuo dos intelectuais" (45). Que abdicaram de pensar livremente e ser um contrapoder ao Estado, ao poder dominante. Renunciaram à crítica, com contundência, do modelo econômico e social em que vivemos, deixaram de perguntar quem produz, o quê, para quem e como: «Vivemos tempos curiosos. Justamente quando os intelectuais de esquerda no Ocidente têm a rara oportunidade de fazer algo útil, se não realmente histórico, eles – ou grande porção deles – estão em pleno recuo. Justamente quando reformadores na União Soviética e no Leste Europeu procuram no capitalismo ocidental paradigmas de sucessos econômicos e políticos, muitos de nós parecemos abdicar do papel tradicional da esquerda ocidental como crítica do capitalismo. Justamente quando mais do que nunca precisamos de um Karl Marx que revele o funcionamento interno do sistema capitalista, ou de um Friedrich Engels que exponha a feia realidade "no chão", o que temos é um exército de "pós-marxistas" cuja principal função é, aparentemente, afastar conceitualmente o problema do capitalismo.» (46)
O desafio hoje é assumirmos que temos responsabilidades históricas sobre os destinos da Europa, enquanto ideia central de fraternidade entre povos. Isso implica uma luta – indissociável – na defesa da liberdade e da igualdade. Na URSS não havia liberdade e isso causou estagnação econômica. Mas a insegurança no emprego, que hoje domina os Estados europeus, ainda que em regimes democráticos, não trará nada à Europa que não seja também a estagnação econômica, a queda na produção e, no limite, ainda que cíclica, a escassez da força de trabalho. Temos responsabilidade de exigir a liberdade efetiva, em que os direitos sociais tenham a dignidade dos direitos políticos; em que o direito ao emprego, como garante da sobrevivência, e o direito à dignidade de viver do trabalho e não da assistência social, sejam acarinhados com a determinação com que é hoje protegido o direito ao voto. Igualdade real para todos que permita dar segurança material para que as diferenças sejam respeitadas e floresçam a diversidade, a arte, a criação, as relações humanas densas. Acredito que encontramos no passado algumas respostas para estes desafios. A história não se repete. Mas ensina-nos. Muito. Do seu desconhecimento nada de bom pode brotar.
* Este artigo corresponde a parte da conclusão do livro publicado por mim em Breve História da Europa, Lisboa, Bertrand.
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