Tirando o Governo e os médicos, acho que a população não sabe o que se passa no SNS nestes dias recentes. Não falo do caos já conhecido e sentido pelos profissionais e pelos utentes, nem das greves regionais, falo de algo muito mais profundo, o movimento de médicos a cumprir a lei, num protesto colectivo autoorganizado, que configura aquilo que na sociologia do trabalho se chama "greve" de zelo. Com isso, cumprindo o que estipula a lei, paralisam o SNS. Entre 20 e 25 hospitais estão sem capacidade de fazer as escalas de Outubro, apenas porque os médicos disseram "vamos cumprir a lei".
É aliás uma demonstração do que há mais de 200 anos tenta-se explicar: quando os trabalhadores cumprem exatamente o que está na lei, nada funciona - porque os trabalhadores em última instância têm que ter autonomia de decisões, quando se deparam com o trabalho real (que não é o trabalho prescrito pelas hierarquias). Oura coisa muito interessante para a sociologia e a política do mundo do trabalho é esta: grande parte dos médicos são na aparência profissionais liberais a tempo inteiro ou parcial mas na realidade isso é só uma aparência jurídica, de facto são trabalhadores por conta de outrem (público ou privado) que funcionam, pela realidade, em colectivo.
Este protesto começou em Viana e espalhou-se para o país, um movimento de base inédito. Mais de 1000 médicos entregaram uma declaração a dizer que não vão fazer mais dos que as 150 horas extraordinárias previstas na lei (que o governo sem pudor quer aumentar para 250).
Há anos que em quase todas as profissões os sindicatos, com poucas excepções, abandonaram a luta por aumentos salariais reais e os trabalhadores vão pagando as contas com as horas extras que se tornaram permanentes. Isso implica desgaste, burnout, falta de prazer no trabalho e horários superiores ao século XIX - há em Portugal estivadores a fazer 400 horas extra, médicos a fazer 800 horas extra, uma desumanidade (e quando não fazem horas extra no público fazem no privado, ficando sem vida pessoal).
Com o movimento da recusa em ultrapassar as 150 horas extra por ano - o limite legal - ficou evidente a falta de médicos para garantir não só o trabalho regular, mas também os Serviços de Urgência.
A única solução é o Ministério e o Governo contratarem mais médicos, e com salários muito bons, é para isso que pagamos impostos, como condenados, aliás. Quem usa o SNS e o serviço privado e quem neles trabalha sabe que a saúde está a assistir a uma degradação dramática, que nos coloca a todos em risco, apesar de termos uma carga fiscal que pode facilmente com impostos directos e indirectos e taxas chegar a 70% (sim, 70%) do rendimento.
A resposta do Governo está a ser pior emenda que o soneto, com a contratação avulsa de profissionais para tapar buracos (com ofertas de 5, 7 mil euros, afinal há dinheiro?) e com o assédio denunciados já pelos médicos que recusam exceder o limite legal de horas extra.
Em Portugal há um saber colectivo de gestão dos hospitais realizado pelos médicos e profissionais de saúde desde 1974. Sabe-se exactamente o que fazer: deixar, como até 1982, que sejam os profissionais de saúde a gerir a saúde de forma democrática e usar os nossos impostos para pagar a nossa vida em vez de remunerar a dívida privada, que é hoje a maior fatia do OE e para a qual o Governo se orgulha de ter superavit, ou seja, o valor que entregamos para pagar médicos e professores, vai directo para investidores e o Governo diz com orgulho que o faz, colocando Medina a anunciar a nossa falta de médicos como um "comportamento exemplar" de contas certas.
Bom, os médicos fizeram as contas e descobriram que sem gestores os hospitais funcionam, sem médicos e enfermeiros não. É, enfim, fazer as contas. E respeitar e ouvir quem trabalha.
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