Tive duas prendas do dia da mãe. Um dos meus filhos trocou de curso, naturalmente expliquei que não dou para peditórios de gap year ou qualquer outra forma de lumpenização. Nesses meses sem estudar ele foi trabalhar. Primeiro com resistência, depois compreendendo que era o certo. Viveu a intensidade da restauração, das 10 às meia noite, às vezes à 1 da manhã, e ouviu tantas vezes de todos na cozinha, que nunca tiveram as oportunidades dele "M. volta a estudar, isto não é vida!". Ontem disse-me - e não tenho como escrever aqui a ternura que ele tem na fala e no olhar, com os seus 2 metros de altura - "não foi um tempo perdido mãe, aprendi muito, sei-me colocar no lugar das pessoas que trabalham nos restaurantes e nos hotéis, e tive tanto desprezo por aquelas pessoas arrogantes que tratam mal quem trabalha".
O meu outro filho chegou à noite, é distraído, doce, anda sempre noutro universo, às vezes blasé, perguntou se havia alguma coisa para jantar, sem tom algum de exigência, pelo contrário, ele mesmo cozinha mais do que eu, eu estava a ler na sala, intercalando entre 4 livros que sublinhava, à procura de algo, que feliz, ao fim de um par de horas tinha encontrado, disse-lhe com naturalidade que não, tinha outras prioridades. O meu marido lia também. Ele olhou-nos, riu-se com carinho sincero e perguntou-me: "Mãe, preciso de te fazer uma pergunta importante, os meus amigos querem trabalhar por dinheiro, ir para gestão ou outras coisas, para ter um salário para viajar, ninguém fala daquilo com paixão, tu és apaixonada pelo teu trabalho, trabalhas em qualquer lado, como se faz para ser assim, como escolho um curso para ser assim? Não quero trabalhar por dinheiro, quero viajar mas quero ser assim, ter paixão pelo trabalho".
Tivemos depois uma longa conversa sobre escolhas, dedicação, resistência à frustração, ler, mercado de trabalho - o que o mercado quer de nós e o que nós fazemos contra o mercado. Fiz a minha milésima prédica contra o telemóvel em defesa da leitura atenta e complexa. É dia da mãe, tenho direito a repetir a ladainha, que já faço todos os dias. Na nossa sala não existe TV (só no escritório há acesso a ecrã). Além de eu não passar horas a cozinhar há um lugar colectivo onde somos convidados a conversar. Tudo isso ajuda a que nos encontremos.
Nunca fiz proselitismo com filhos. Nem com ninguém. Sou socialista romântica, a revolução é a transformação densa da humanidade, a liberdade e a igualdade são o azimute da minha vida. Só quem domina a política e o Estado passa a vida a ensinar aos outros que não devem preocupar-se com a política. Essa ideologia da não-ideologia é um ar do tempo. Mas não sou de sermões. Para ninguém. Lamento a despolitizarão, mas eles que façam o que quiserem da vida. Só faz sentido falar de política a quem se interessa pela política, se não é uma missa.
Porém, ontem disseram-me duas coisas profundamente humanas e radicalmente marxistas: a importância de saber distinguir classes sociais e de que lado estamos; e a centralidade do prazer no trabalho contra o trabalho alienado. O humanismo radical destas duas ideias fez o meu dia da mãe ter mais sentido.
Há muita gente que aos 60 anos (e as organizações de trabalhadores também!) ainda não compreendeu que nós temos uma classe social, e que o salário é necessário, mas ser apaixonado pelo trabalho é tão vital como receber e pagar contas. As reivindicações não podem passar só por salários, tem que se debater o sentido do trabalho. A maior das pessoas faz o que não gosta e o que não tem utilidade social. Mas dá lucro, serve o Estado e o mercado. Mas isso é autodestrutivo, não só do planeta, sobretudo destrói as pessoas. Na realidade a ideia marxista é mais radical: devíamos todos trabalhar com paixão, e o salário não devia existir porque os meios para trabalharmos seriam colectivos. É a minha. Trabalhar por um salário é uma pena que se leva às costas, até dobrá-las e nos fazer o que não somos.
Resta-me só uma nota final. Não sou a melhor mãe do mundo, deixo esse lugar para a minha e a de cada um. Mas fico feliz de os ver ser decentes, fazer perguntas importantes, resta-me insistir que o mérito não é meu. Para criar filhos é preciso uma aldeia - tiveram uma aldeia, pai e padrasto, avós, ama, tia, tudo no mesmo bairro!, amigos nossos, amigos deles, fantásticos, um grupo de miúdos maravilhosos, fomos todos e todos juntos, os meus filhos foram educados por uma aldeia. Talvez nisso eu tenha grandes responsabilidades - em ter percebido muito cedo que nada faz sentido sozinha, muito menos ser mãe.
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