Parece que Irene Pimentel comentou o facto de eu ter comparado o direito a desertar na guerra colonial, com o direito a desertar da Rússia e da Ucrânia. No texto cheio de calúnias e ressentimentos (esta sina de país pequeno e periférico), o único argumento que vale a pena é debater, e do qual discordo, é este. É um argumento simples, creio simplista, como explicarei aqui: Portugal estava no lugar errado, a Ucrânia está no lugar certo, em Portugal deve haver deserção, na Ucrânia conscrição militar.
Isto a propósito de eu ter defendido, aliás desde o início da guerra, que os russos devem combater Putin e os Ucranianos devem combater Zellensky, e que nenhum russo ou ucraniano deve ser obrigado a combater. E ter chamado a atenção para o facto de que, pese embora a propaganda para criancinhas a que temos assistido de mais os lados, a Ucrânia decretou desde o início que nenhum homem entre os 18 e os 65 anos podia sair do país e a Rússia até hoje só convocou voluntários e agora 300 mil reservistas, numa população de 150 milhões. Os que fogem - quanto a mim bem - podem fugir da Rússia, da Ucrânia o democrata Zellensky decretou que para defender a pátria um homem deve ser obrigado a ir para a guerra. Não é a minha opinião.
Como aliás nunca defendi que os camponeses africanos fossem obrigados a entrar nas fileiras dos movimentos de libertação, se o fizessem voluntariamente sim, obrigados nunca. E só o defendi porque não era uma "guerra patriótica" que estava em causa nas colónias portuguesas, mas uma revolução anti colonial (palavra que Irene Pimentel não usa nos seus livros, usa a de Estado - guerra colonial), ou seja, a possibilidade, que foi derrotada, de os movimentos de libertação tomarem o poder e derrotarem não só o Estado português, mas controlarem democraticamente a sua produção e os seus países - isso foi malogrado. Foi a "pátria" africana que venceu e a "pátria" africana rapidamente fez negócios com a "pátria" portuguesa, europeia, chinesa para vender a "pátria" onde os povos de África ficaram como espectadores miseráveis.
A pátria portuguesa tem banqueiros que levaram à falência os serviços públicos, elites empresariais que surfam a dívida pública, esgotados hospitais e escolas, empresários que jogam com habitações na bolsa, políticos que fazem leis para proteger tudo isto, como tem a pátria ucraniana e a pátria russa. Portugal tem gente que vive do trabalho, e que acredita na igualdade e liberdade como valores indissociáveis, como tem a Ucrânia e a Rússia - é essa a minha pátria, a de quem vive do seu trabalho e não suporta a desigualdade social e a falta de liberdade.
Na Ucrânia, relatado pelas ONGs e até em entrevista da RTP, da BBC etc havia milhares de homens a querer fugir e foram impedidos, aliás os que fugiram ou se recusaram a voltar ao país, como tantos imigrantes mesmo em Portugal que foram chamados (nunca entrevistados), estão sujeitos a multas impagáveis. Da Rússia - pelos vistos - há filas e filas a sair e podem. Fazem bem, eu não ia defender com a minha vida Estados, nem Putin, nem Zellensky, nem Biden ou Costa. A minha vida vale e creio que a de todos vale muito mais do que ser um peão da luta geoestratégica dos Estados.
Agora dizem alguns, e Irene Pimental, na sua simplicidade teórica. Mas uns são agredidos outros são agressores. É o argumento, historicamente conhecido, de "defesa da pátria".
Primeiro uma questão de princípio minha, que é ideológica: nenhum homem em momento algum da história deve ser obrigado a combater. Admiro quem combateu pela revolução espanhola, não admiro nem nunca admirei quem combateu por "pátrias". Nunca tive simpatia pelo nacionalismo do MPLA e sempre reivindiquei como minha a luta de Amílcar Cabral. Acredito numa humanidade em que homens e mulheres lutam pela igualdade e pela liberdade e nenhuma pátria representa esse ideal de fraternidade entre povos.
Mas vamos ao argumento de Irene Pimentel e vejamos a sua falta de sofisticação teórica. Irene Pimentel não compreende, como não compreende tanta gente (ela porém como investigadora devia conhecer teoria dos Estados) que esta não é uma luta entre ucranianos e russos, é uma invasão do Estado russo, a que se opõe o Estado ucraniano. Estados não são sociedades. Estados não são as populações. A vida das sociedades não se reduz, nunca, à actuação dos seus Estados.
É o bê-á-bá da história. Esse erro, de tantos mesmo na historiografia, é comum. Pensar que a única força de uma sociedade é o seu Estado e os governos e os exércitos que os representam.
Talvez eu me explique melhor com o Irão. O Irão nunca avançou um milímetro na sua democracia com sanções e bombas, e agora o regime abana - que caia! - com manifestações de massas que já envolvem sindicatos. As sanções são uma penalização dos povos e um jogo económico financeiro de quem brinca a mandar no mundo.
Os ucranianos não são o seu Estado. Milhões de ucranianos, e nem me refiro aos russófonos, não têm nenhum interesse em lutar ao lado do seu Estado, mas sim contra ele. Porque o seu Estado, representado por Zellensky, deixou o país ser o campo de bola onde a NATO, a China e a Rússia jogam a sangue. Porque vendeu as terras dos camponeses às multinacionais da União Europeia e norte-americanas; porque está a querer expropriar até as sedes dos sindicatos na Ucrânia e porque aproveitou a "defesa da pátria" para flexibilizar a lei laboral a níveis pré históricos. Tal como na guerra civil espanhola, os ucranianos que queiram vencer terão que lutar contra Putin, invadir, e contra Zellensky, cuja política é a de vender o que sobra do país à UE e aos EUA. E sim, os ucranianos não poderão fazê-lo sem uma luta de solidariedade internacional, nossa, que não existe.
Porque a única que existe - com a esquerda no estado catatónio que está - é a direita como política, são as pessoas como Irene Pimentel a defenderem políticas que levam de facto ao holocausto nuclear. Isso não é só de direita, é lunático e criminoso.
Esta visão não é só historiograficamente insustentável. Ela é uma deriva que demonstra que quando os nossos Estados estão dispostos a ir para a guerra não falta quem, talvez por nunca ter compreendido qual o lugar dos Estados nas sociedades, defende hoje que podemos ir para uma III Guerra Mundial.
A única saída para a Ucrânia é a do passado internacionalista, quando os trabalhadores se ergueram, qualificados, manuais, nacionais e migrantes, na Rússia e na Ucrânia, em todo o mundo, contra os seus Estados, paralisaram os países com greves gerais, controlaram os lugares de produção e as terras, trabalharam e exigiram democracia real em todas as decisões, desde logo nos locais de trabalho. Essa é a única via possível e realista. O resto, bombas da NATO, onde Portugal está, fazem parte da guerra e não da paz, fazem parte da catástrofe que é a divisão do mundo. A saber também que, quando se derem revoluções, a NATO, a UE, e Zellensky vão ser os primeiros a sentaram-se à mesa com Putin para as esmagar. Lá está, os Estados na hora h sabem sempre de que lado estão. Saibamos nós também estar do outro lado.
Link para artigo sobre a venda a desbarato da Ucrânia ao capital estrangeiro
https://thenextrecession.wordpress.com/2022/08/13/ukraine-the-invasion-of-capital/
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