Há uns anos escrevi um ensaio sobre o país, tentava perceber de onde vimos, para onde vamos, no calor do pós troika tentar compreender o que fica do que passa, foi publicado pela Bertrand. Chama-se "Para onde Vai Portugal?". O Miguel Real escreveu esta crítica ao livro, que aqui partilho. Todo o meu prognóstico, então, sobre a economia e o trabalho confirmou-se, tb sobre a crise social e sindical, era porém, creio, mais optimista quanto à organização dos trabalhadores, quando publiquei o livro. Tenho resistido ao cinismo quando olho o quotidiano político de ausência de organização da classe trabalhadora portuguesa, mas hoje coloco a hipótese da barbárie (de não haver solução breve nem em breve) com mais força do que quando escrevi o livro. Tenho menos esperança, embora não ausência dela. A resenha do Miguel como seria de esperar faz uma análise do livro e dos meus outros livros, num diálogo maravilhoso com o pensamento português.

Para Onde Vai Portugal? De Raquel Varela, por Miguel Real

"Há muitos "Portugais" dentro de Portugal. Um deles, herético, para empregarmos uma categoria religiosa, ou heterodoxo, aplicando uma categoria sociológica, é o espelhado nos livros de Raquel Varela (RV) desde 2011, quando publicou a sua tese de doutoramento, A História do PCP na Revolução dos Cravos, na qual, de certo modo, acusava o PCP de se ter comportado, em 1975, não como uma vanguarda revolucionária, mas como um obstáculo e mesmo um bloqueio à revolução então em curso, nomeadamente a partir de Agosto daquele ano. Era então, como hoje, uma tese temerária, cuja função na historiografia recente de Portugal foi (continua a ser) a de reabilitar as forças operárias e populares que tinham encabeçado o "Processo Revolucionário em Curso" no "Verão Quente" de 1975.

O mesmo faz no livro ora publicado, Para Onde Vai Portugal?: "Na verdade, o único projecto político bem-sucedido em Portugal do ponto de vista de ampliar o acesso ao bem-estar – dar mais a mais pessoas – foi o projecto revolucionário de 1974-1975, que assentou não num equilíbrio entre classes sociais e fracções de classes sociais, mas justamente no seu oposto, num conflito, que teve como pólo central a democracia de base. Nunca tanta gente decidiu tanto em Portugal como no período de 1974 – 1975 e o que saiu desses dezanove meses foi a assunção de um mínimo social civilizacional – o direito ao emprego e o Estado Social – e chegou pela mão da confrontação real de projectos políticos realmente alternativos" (p. 24).

De certo modo, desde então, Raquel Varela, na sua já extensa bibliografia, contraria fortemente a tese hoje muito salientada de que o 25 de Novembro constituiu o retorno purificado aos valores do 25 de Abril de 1974. Assim, RV tem ressuscitado do esquecimento histórico o período entre o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975, período normalmente apostrofado de radicalismo político, de domínio da extrema-esquerda, de uma política de terceiro-mundismo e de fundamentalismo comunista, que poderia ter levado Portugal a uma guerra civil, para evitar a qual o PCP teria sido obrigado a recuar. Neste sentido, nos seus livros, RV enfatiza como exemplar, a ser continuado, sobretudo a ser retomado, o movimento popular socialista das comissões de trabalhadores, de moradores, a nacionalização das grandes empresas, favorecendo os valores da solidariedade e da igualdade, sem nunca, porém, deixar de sublinhar o alto valor da "liberdade individual" como prática comportamental diária, alimento ontológico e histórico das actuais sociedades (p. 17).

Neste sentido, como enaltecimento deste rumo histórico para Portugal, a autora publicou, em 2014, a História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-1975, Revolução ou Transição? História e Memória na Revolução dos Cravos (2017), e, como fundamento geral, Breve História da Europa. Da Grande Guerra aos Nossos Dias (2018), no qual dá forte destaque aos processos revolucionários nos diversos países europeus.

O livro agora em apreço, Para Onde Vai Portugal?, faz ressaltar, portanto, o valor histórico de comando político de Portugal pelas organizações de base. Mas, pergunta-se, tal projecto será hoje possível? Mais, será viável, factível, num tempo em que Portugal se integrou na Europa e a antiga classe operária praticamente desapareceu? Segundo RV, sim, devido ao alto grau de concentração da riqueza, ao crescente e gigantesco desnível social e salarial, à pauperização progressiva das massas trabalhadoras, à precarização do emprego nos jovens, à política assistencialista no desemprego, à privatização selvagem das grandes empresas desde Cavaco Silva, continuada por Passos Coelho, ao sonambulismo por que o Estado conduz a população em entretenimentos fúteis, em conjunto com os dois milhões de pobres assumidos bem como mais dois milhões que sem assistência do Estado cairiam na pobreza, e, ainda, o predomínio de uma política financeira divorciada da economia real - factores que tornam actual e imperiosa, segundo a autora, a necessidade de uma nova revolução: "Hoje, por mais surpreendente que possa parecer, as condições sociais, políticas e económicas para uma mudança para uma sociedade mais justa, igualitária e livre são melhores do que alguma vez foram em todo o século XX" (p. 25). Ou seja, quanto mais aprofundarmos o actual caminho político, social e económico de Portugal mais nos encontraremos em situação pré-revolucionária.

Neste livro de RV, como nos restantes, levanta-se um dilema político de grande, grande importância: a democracia parlamentar actual favorece ou não a criação de um Estado e uma sociedade mais justos e igualitários, com forte coesão social (sem gigantescos desníveis de riqueza)? Como também José Saramago sempre sustentou, RV defende outro tipo de democracia, onde seja problematizada a delegação de poder por força do voto eleitoral: "Temos uma classe trabalhadora, a classe-que-vive-do-trabalho (professor, médico, bancário, estivador, cantoneiro, bolseiro, enfermeiro, engenheiro…), que percebeu os limites da delegação de poderes. Ainda não teve força para, no seu lugar, erguer uma outra forma de organização que implique o exercício do poder, de forma directa, livre, igualitária e democrática (não são chavões, um plenário que não dá voz a todos não tem legitimidade)" (p. 26).

É impossível, numa simples recensão, teorizar, seque apontar, todas as propostas políticas trazidas por este livro de RV (é fundamental a leitura do penúltimo capítulo: "Pão e poesia, sexo e amor: o espectro"). Uma, porém, devido à sua importância como interpretação histórica, deve ser salientada. Segundo a autora, "como forma de conter a revolução em 1974-75", o sindicalismo em Portugal, "na sua forma mais contemporânea, nasceu com o pacto social, segundo o qual os trabalhadores abdicavam da luta estratégica contra o Estado em troca de direitos" (p. 117). Nasceu assim um sindicalismo institucional reformista (CGTP e UGT) e, portanto, o sindicalismo revolucionário hoje é uma expressão espontânea das massas trabalhadoras, à revelia da maioria do sindicatos.

Ler RV é hoje perscrutar e ambicionar um outro Portugal, rebelde e marginal ao pensamento e à política mainstream, um Portugal heterodoxo, como, há 150 anos, seria o Portugal ambicionado por José Fontana e Antero de Quental, concretizado, e posteriormente falhado, na malograda criação da União Democrática, em 1873, na criação do primitivo Partido Socialista, em 1875, nas ligações à Internacional dos Trabalhadores, em 1870, na escrita, por Antero, do sempre adiado e depois destruído Programa para a Geração Nova, iniciativas totalmente estranhas ao pensamento dominante na Regeneração, registadas porém na História.

Assim, o ofício de historiadora de RV parece estatuir-se como o concebiam os historiadores portugueses dos séculos XIX e XX, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Jaime Cortesão, António Sérgio, Vitorino Magalhães Godinho, Barradas de Carvalho, Joel Serrão, Oliveira Marques, para os quais a prática da ciência histórica constituía o suporte e o elemento para uma prática social e política activa, como hoje igualmente o pratica Fernando Rosas e, num outro campo, Rui Ramos. "


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